Mais a visão se aprofunda,
mais estrelas se percebem,
na escuridão...

29 de fevereiro de 2012

Olhos de cão (alma abandonada)


Nestes olhos cintila minha alma,
alma de todos os abandonados.

Ah, quantas caminhadas 
intermináveis, guiadas pelos instintos. 
Quantas vezes andei em círculos
e quantas outras cheguei ao destino,
apenas para perceber que o destino
já não estava lá.

Cansaço, 
sem referência no mundo,
sem mais saber quem sou,
sem ter para quem voltar,
sem vontade de prosseguir,
aqui me deixei ficar.
Qualquer olhar me supre,
qualquer afago me conforta.

Só abraça minha solidão
a lembrança de haver pertencido,
locais diluídos no espaço,
pessoas diluídas no tempo.
Imensa lembrança viva, coletiva,
porque somos tantas,
tantas vidas suspensas,
compartilhando a mesma alma
abandonada.

Só acalenta minha chama
a esperança de poder ser
tudo o que esperavas de mim,
melhor do que jamais fui,
livre das culpas que devo ter,
outra chance, nova história
de guardar as tuas ausências,
como se meu tempo fosse infinito,
e te receber com olhos confiantes,
sem lágrimas.
Queria tê-las, agora.

13.02.2003

23 de fevereiro de 2012

Etéreos náufragos


Guardo,
no coração de marfim,
tudo o que me trazem,
o que não peço ou mereço,
o que jamais teve preço,
tudo o que me fazem
de bom ou ruim.

Guardo,
nos calabouços da mente,
tudo o que me ensinam,
o que não vi, mas conheço,
o que sei desde o começo
dos mistérios que alucinam,
do que ninguém mais sente.

Guardo,
nos labirintos da alma,
o que me toca e me fere,
o colorido da existência,
o dolorido da essência,
tudo o que me impele,
consome, ou acalma.

Faço
dos astros frios morada,
da noite quieta jornada
da consciência a singrar,
do pensamento a rasgar
vagas e bruma no escuro.

Etéreos náufragos procuro.

fev/2012

16 de fevereiro de 2012

Pessoas não-interferentes


Conduzem suas vidas distantes de atos altruísticos, ações voluntárias, exposições pessoais desnecessárias. 

Fogem, apavoradas, de doentes, desassistidos, agredidos, traficados, torturados, explorados, vilipendiados: homens, mulheres, crianças, jovens, idosos, animais, o que seja.

Concedem-se praticar jargões politicamente corretos, manifestar consternação oportuna e convincente, apenas em medida suficiente à garantia da imagem livre de críticas.
Maior intensidade seria dispêndio inútil de energia.

Consideram o planeta indestrutível, inesgotável, absolutamente auto-regenerador, propriedade a ser explorada sem respeito pelos seus demais ocupantes.

Com inescrupulosa maestria, evocam a ética, distorcem valores, passam-se por benfeitoras ou vítimas, enquanto furiosamente rotulam o pensamento divergente, sofismam, formulam as teorias conspiratórias que suas bocas-de-bate-estacas pronunciarão ad nauseam.

Defendem um imaginário Estado democrático e enxuto, mas paradoxalmente onisciente, onipotente, provedor de todas as soluções em que jamais se envolveriam de maneira proativa.
Pagam tributos, pagando a consciência, em nome da desobrigação.

Não as incomodam, de fato, as mazelas do Estado real, corrompido, degenerado, decadente, conquanto não lhes atinjam as conveniências.

Conhecedoras das próprias verdades, vestem posturas e atitudes ensaiadas até que o espelho lhes mostre pessoas genuínas, abnegadas, compassivas.

Jamais proferem aquelas palavras simples...
Desculpam-se ou agradecem através do silêncio.


Extremo oposto, interferentes obstinadas ousam fazer o que precisa ser feito.

Entretanto, a Criação parece expressar imensa insatisfação para com interferências nos desígnios infernais já traçados para os abandonados, doentes, desassistidos, agredidos, explorados, traficados, torturados, vilipendiados.

Preparou então o purgatório em que as interferentes são premiadas com dificuldades materiais, constrangimentos, humilhações, obstáculos de toda sorte à realização de suas interferências.

Destinou-lhes, ainda, a crítica, a arrogância e o escárnio boçal dos preguiçosos morais, a quem consentiu assentar comodamente suas crédulas bundas em inexpugnáveis troninhos de "coroas da criação".

Um desafio e um teste, ambos de péssimo gosto.
Aceito o primeiro. 
Ignoro o segundo. 

10/04/2011- rev. fev/2012 (original)

12 de fevereiro de 2012

Do fundo desses olhos


Doces olhos que ainda me fitam, 
na escuridão do quarto, nos sonhos,
em relances inesperados
de presença invisível.

Do fundo desses olhos,
uma perdida cor me chama,
sua luz atravessa distância e tempo,
perseguindo o coração,
para confundir a memória viva.

Do fundo desses olhos,
mensagens elementares, feitas de coração
e velas acesas e mãos contritas,
jogos de luz e sombras,
recendendo a relva sob o sol matinal.

Do fundo desses olhos,
avistamentos e estrelas
e uma antiga alegria preservada, persistente,
vêm sussurrar segredos eternos ao presente.

Do fundo desses olhos,
um anjo desterrado me quer dizer
o adeus que não desejo ouvir.

Dezembro, 17 - 2008 (versão)

Del fondo de esos ojos


Dulces ojos que aún me están mirando, 
en la oscuridad del cuarto, en sueños,
en relances inesperados
de presencia invisible.

Del fondo de esos ojos,
un perdido color mi llama,
su luz atraviesa la distancia y el tiempo
persiguiendo el corazón,
para confundir a la memoria viva.

Del fondo de esos ojos,
mensajes elementales, hechas de corazón
y velas encendidas y manos contritas,
juegos de luz y sombras,
con el olor de la hierba bajo el sol de la mañana.

Del fondo de esos ojos,
avistamientos y estrellas
y una antigua alegría preservada, persistente,
vienen a susurrar secretos eternos al presente.

Del fondo de esos ojos,
un ángel desterrado me quiere decir
el adiós que no deseo oír.

Deciembre, 17 - 2008 (original)

7 de fevereiro de 2012

Ora bundas!



Da saudável bunda, atributo anatômico,
à legião de pessoas-bundas,
anônimas, celebridades, ou wannabes.

Hora a hora, dia a dia, semana a semana,
TVs, jornais, revistas, outdoors, displays
fabricam, promovem, exploram,
despejam sobre nós
bundas de toda sorte, 
a qualquer pretexto.

Não mais pensar, decidir, transitar,
comer, descansar, espairecer, sorrir ou chorar,
a salvo de invasivas, inconvenientes,
onipresentes bundas.

A maior, a melhor, a mais ousada ou bizarra bunda
da festa, do festival, do país do reality show.

Gananciosas personas-bundas de pessoas irreais.
Bundas, bundas, premiadas bundas.
Afamadas, reverenciadas bundas.
Ora bundas!

Reconhecimento imaterial,
comiseração eventual,
aos que educam, escrevem, pesquisam,
socorrem, resgatam, curam, protegem,
a todos os que pensam, constroem,
fazem acontecer.
Vivam à míngua, morram por suas lutas, 
conquanto não queiram ser
apenas bundas.

Às crianças,
menos livros, menos inocência,
mais futilidade, ganância, vaidade e espelhos,
que difíceis são os caminhos do pensamento,
e mister se faz cultivar
apenas bundas.

janeiro/2012

4 de fevereiro de 2012

Cavalo Solidão



Do momento em que nasci,
dilui-se no tempo
a nobreza do que sou.

Um dia, já distante nesta vida,
compreendi meu único valor,
promessa de trabalho que sempre fui.

Prossegui paciente, resignado,
aprendendo a ser forte,
suportando frio, chuva, sede, fome,
entregando minha força
onde quer que me levassem,
aceitando, sem compreender,
percorrer caminhos que não eram meus,
carregar os fardos,
ficar e esperar,
em qualquer lugar.

Ficar e esperar,
olhos calmos, pensando,
o tempo passando pelas minhas entranhas.

Olhos calmos,
como se não pensasse ou sentisse
a solidão ficando e esperando comigo,
contemplando a vida
viva e livre,
à minha volta...

27.03.2003 (versão completa)
(Versão compacta publicada em alguns websites, desde março de 2003.)

Loneliness horse


From the moment I was born,
the nobility of what I am
was lost in time.

Far away in this life of mine,
I realized my only and mere value,
promise of work I've always been.

I persevered resigned, forbearing,
learning to be strong,
enduring cold, rain, thirstiness, famine,
rendering my strength to where they lead me,
accepting, with no understanding,
walking paths that were not mine,
bearing the burdens,
staying and waiting
anywhere.

Staying and waiting,
serene eyes, thinking,
time passing through my entrails.

Serene eyes, as if not thinking or feeling
the solitude staying and waiting with me,
contemplating life
alive and free,
around…

27.03.2003 (full original)
(Short version published on some websites, from March 2003.)