Mais a visão se aprofunda,
mais estrelas se percebem,
na escuridão...

7 de março de 2012

Eu vi...


Faz algum tempo...

Acompanhei uma familiar, durante tratamento realizado na Divisão de Medicina de Reabilitação, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMR HC FMUSP).

A unidade de atendimento, denominada Estação Especial da Lapa, funciona em enorme galpão, situado na estação Lapa da CPTM, aqui em São Paulo.

Comparecemos durante cinco semanas consecutivas, duas vezes por semana.
Chegávamos pouco depois das 6h00 da manhã, bem antes do horário marcado, para fugir ao trânsito da cidade.

Após deixar a paciente aos cuidados da fisioterapeuta, eu permanecia em uma área de espera, através da qual continuavam a chegar mais e mais pessoas, para os seus tratamentos.

Penso que a severidade dos casos exigisse tal ambiente de áreas praticamente abertas, para facilitar a locomoção, o que também me proporcionava visão plena da área de atendimento.

Por diversas vezes, conversei com acompanhantes de alguns pacientes, enquanto observava aqueles seres humanos oferecendo e recebendo tratamento.

Decorreram inevitáveis reflexões sobre involuntários "registros mentais fotográficos" que ainda me acompanham, e que passo a relatar em detalhe apenas suficiente ao objetivo deste texto.

Vi um casal de idosos.
Ele, semi-tetraplégico, sempre sorrindo e animado com os pequenos progressos conseguidos a cada sessão de tratamento.

Observei o seu esforço ao praticar exercícios terapêuticos que, para nós, não passariam de jogos infantis, como colocar algumas argolas em uns pinos sobre a mesa, elevar uma bola de plástico acima da cabeça, montar um puzzle de peças bem grandes, passar um objeto de uma mão para outra.

Soube que a sua condição resultara de um evento relativamente recente.

Residentes inicialmente no interior de São Paulo, enfrentavam 6 horas de viagem, duas vezes por semana, para vir às sessões de tratamento.
Mudaram-se depois para a capital, deixando para trás, casa, filhos, netos...

Vi uma mulher, uns 30 anos de idade, paraplégica, sempre trazida pelo marido.
Ambos sorrindo, todos os dias.

Ele a tirava da cadeira e acomodava na banqueta, em frente à mesa em que um grupo de pacientes praticaria os mesmos exercícios terapêuticos.

Notei sua grande dificuldade com os exercícios, e o sorriso que dirigia ao marido, ao final de cada um deles, fosse ou não bem-sucedida.

Vi uma jovem, 18 a 20 anos de idade, tetraplégica.
Vítima de "bala perdida", chegava sempre em uma cadeira de rodas conduzida por duas pessoas.
Mais uma fatalidade da violência urbana.
Seus olhos pareciam determinar o caminho a seguir.

Vi uma criança, máximo de 4 ou 5 anos de idade.
Corpinho afivelado a uma cadeira de rodas minúscula, semelhante a um carrinho de bebê.
Um dos seus braços, imobilizado por uma tipóia de velcro.
Com o outro braço, movia uma das rodas da cadeirinha que, evidentemente, não avançava em linha reta.
Ela sorria e continuava se esforçando.

Sua acompanhante corrigia oportunamente o curso da cadeirinha.
Parecia interferir o mínimo possível, talvez para que a criança sentisse que avançava por seus próprios esforços.

E tantos outros eu vi...
Seres humanos atingidos por alguma devastadora porrada da vida.

Considero haver recebido a oportunidade abençoada de transitar em um mundo praticamente invisível para pessoas que "levam uma vida normal".

Um mundo somente vivenciado pelos que buscam reconforto, expectativa de cura, recuperar qualidade de vida...  
e por aqueles dispostos a prover tudo isto, através de conhecimento, dedicação, respeito, carinho, vocação.

Jamais notei desatenção, ou expressão de contrariedade, desaprovação, desânimo, cansaço, nas faces de quaisquer daqueles profissionais - seguranças, atendentes, pessoal de limpeza, recepcionistas, terapeutas, médicos ou médicas, enfermeiros ou enfermeiras.

Certamente existem, por todo o planeta, outros incontáveis "mundos invisíveis", em suas áreas de atuação específicas, congregando milhões de esperanças.

Desta experiência, aprofundaram-se algumas percepções valiosas e indeléveis:

A insignificância dos problemas, dificuldades e desentendimentos cotidianos, em nossas vidas perfeitas.

O pouco valor que freqüentemente atribuímos às nossas vidas perfeitas.

A mesquinhez de qualquer má disposição, em relação a quem necessite de ajuda para continuar lutando.

A determinação e a coragem dos que persistem lutando, como resultado também da confiança demonstrada por quem os ajuda a lutar.

A dedicação sincera, como a melhor expressão da confiança.

Dias atuais...

Ontem, a propósito de certa desinteligência minha, recebi de meu irmão uma frase simples, sintética, que me levou a resgatar este texto e encerrá-lo com leveza:

"A vida é muito curta, e acabamos perdendo tempo 
e oportunidades de ser (e tornar os outros) mais felizes."
Marco Cyrino