(Deixar-se
um pouco à deriva, no meio do oceano, para olhar as estrelas...)
Dias recentes, eu mesmo consertei dois pares
de calçados, um meu, outro de minha esposa. Ambos com aparência ainda razoável,
mas funcionalmente exauridos, solados tendendo a descolar, recuperação
trabalhosa.
Já haviam passado pelas mãos de um
sapateiro, mas com resultados precários.
Comprei um tubo de cola especial, cujo custo correspondeu
a uma porção mínima do preço de um reparo profissional.
Longa e cuidadosa restauração, projetada e realizada
nos intervalos de trabalho... durante os quais o pensamento terminou passeando
pelos relativamente recentes tempos de abundância material, estabelecendo um inevitável
confronto com os dias atuais.
Flashbacks
Uma certa
tristeza, ao pensar em tantos e tantos bens materiais novos e semi-novos que já
tivemos condições de presentear ou doar, tanto para renovar, quanto pelo prazer
de fazer alguém feliz.
Comprávamos os
melhores produtos de suas classes, sempre objetivando qualidade, a despeito de marcas
ou griffes, detalhes estes que importam mais a quem pretende "mostrar o que
possui".
Tempos em que o
meu trabalho profissional em muito contribuiu (digo sem modéstia) para a
formação e instituição de uma cultura empresarial de utilização ágil, segura e
eficaz de recursos de TI (tecnologia da informação).
Talvez porque, numa
era pré-Internet, participei de uma classe de pioneiros visionários, a
construir sistemas de informação gigantescos, funcionais e confiáveis, a partir
de ambientes e ferramentas de software quase sempre incompatíveis entre si, e
utilizando hardware (equipamento) lento, custoso e limitado.
Tempos em que
éramos bem compensados por sermos aqueles que "tiravam
leite de pedras", através de extenuantes exercícios
de lógica e criatividade, para superar as deficiências das tecnologias
disponíveis.
Primórdios da
computação conectada, freqüentava os chamados BBS (Bulletin
Board Systems), muitos
dos quais vieram a se transformar em grandes ISPs (provedores de acesso à Internet
e serviços associados).
Empurrava meus
clientes (maioria corporativos) para a Internet, numa época em que,
documentadamente, todos eram temerosos e resistentes, argumentando tratar-se de
"coisa para nerds e micreiros".
Durante muitos
anos, criei, implantei, implementei e geri os meus sistemas, meus filhos trabalhadores, empregados nas empresas
dos meus clientes.
Percorria os caminhos que traçava para mim e para os que me
acompanhavam na jornada, clientes, colaboradores, discípulos (sim!), amigos que
ofereceram ajudas inestimáveis, e minha esposa-parceira-sócia.
Mais recentemente...
Há alguns anos,
por uma conjunção de fatores perversos, incluindo atos criminosos de determinado
cliente (grande empresa), e uma absoluta não-reciprocidade por parte de pessoas
que hoje trato distante e cordialmente por "seres
normais", sofremos enorme impacto em nossas finanças e em nossa
capacidade de empreender a partir dos softwares até então desenvolvidos.
O evento terminou
por me deslocar do mercado de TI, principalmente pela desilusão com
respeito às pessoas que transitam no ambiente corporativo - público alvo
do trabalho que eu desenvolvia.
Para prosseguir
interagindo com seres humanos "espertos",
teria de desenvolver e exercitar um tipo de habilidade que jamais pretendi incorporar
ao meu modo de ser, embora fosse capaz de fazê-lo com perfeição, se desejasse.
Tentei ainda algumas
incursões no terreno de TI, as quais me custaram elaborados anteprojetos e até
projetos semi-detalhados, contendo soluções para problemas que os potenciais clientes
consideravam críticos, complexos, quase insolúveis.
E todos esses potenciais
clientes exerceram fina esperteza,
a partir do momento em que tomaram conhecimento mais detalhado das soluções
propostas.
(Sempre, em algum
momento, torna-se necessário detalhar as soluções, para viabilizar a decisão
sobre uma possível contratação).
Aprendi que
clientes potenciais são ainda mais espertos do que clientes contratantes.
Então, apesar de desenvolver
software por vocação, abandonei sem remorsos estas capacidades e qualificações.
Conseqüentemente,
em pouco tempo e por questão de sobrevivência, tive de me reinventar profissionalmente.
Recorri a outros
repositórios de conhecimento, como a linguagem escrita e o domínio de outros idiomas,
objetivando prestar serviços "mais a varejo", mais livres de contatos prolongados com as pessoas ditas normais.
Isto resultou em incursões
pelo universo da tradução técnica, onde creio haver estabelecido uma
respeitável reputação profissional, ao longo dos anos recentes.
Infelizmente, esta
é mais uma área em que a esperteza impera, remunerando pessimamente os
profissionais (maioria de freelancers), aqueles efetivamente responsáveis pelos
serviços que as agências de tradução entregam aos seus clientes. Mas, isto
mereceria uma dissertação à parte, que foge ao escopo deste texto.
Ainda, por
caminhos inesperados, unindo o trabalho com textos e os conhecimentos de TI,
tornei-me responsável técnico e editor de dois websites de meu irmão Marco, além
de criar um website meu, atividades estas que me permitiram voltar a ter algum
prazer com o meu trabalho.
Nesta fase, aprendi
também (não sem fortes resistências) a "aceitar
receber ajuda", algo até então insuspeitado para quem sempre se viu
como provedor bastante e suficiente a si mesmo e aos que o acompanham na
jornada.
Estas percepções e
constatações me passaram pela mente, recorrentemente, durante os dias em que consertei
os tais sapatos.
Voltando aos sapatos rotos...
Os consertos se
mostraram bastante efetivos e duráveis, com resultado estético quase bom, aspecto
este pouco relevante face à compensação pessoal de ser
capaz de consertar, e poder continuar a usar algo cuja substituição não
se ajustaria ao orçamento atual.
Ainda, um desses
pares remendados, por duas vezes, freqüentou eventos sociais familiares em que todas as pessoas ostentavam griffes em tudo o que
trajavam ou portavam.
Ninguém, além dos
meus felizes pés, sequer observou ou notou o estado daquilo que eu calçava.
Ao longo da vida, aprendi
a detestar a autocomiseração.
Assim, diante das
dificuldades materiais atuais, mantenho a convicção de
que só preciso do essencial, procurando extrair o melhor daquilo que
tenho, manter a nave assestada, ouvir os ventos, estabelecer rotas, enxergar um
pouco além do horizonte.
In
questo mondo di cartone...
Não desista diante de agruras, espertezas,
palavras duras.
E se o impedirem de exercer a sua melhor vocação,
reinvente-se!
Talvez isto o conduza aos melhores caminhos
da vida.
dez.2012 - ago.2013