Desperta de forma estranha, nenhuma noção sobre quanto tempo permaneceu dormindo, como se houvesse sido simplesmente desligado e religado.
Meio aturdido, um pouco de
náusea, movimentos lerdos, respiração retomando ritmo normal.
Espécie de poltrona-cama,
forma de concha ovalada, move-se lentamente para a posição quase vertical, até seus
pés tocarem o piso morno.
O ambiente nada amplo sugere
uma cápsula cilíndrica vertical, paredes transparentes na maior parte do
perímetro, tornando-se gradualmente menos embaçadas.
Lá fora, luz de sol poente,
quase rasante, em tom muito claro, diferente do avermelhado que sempre apreciou.
Paisagem lembrando a de uma
praça, área urbana com imensos espaços abertos, predominância de cores claras,
já sombreadas, ponteada por algumas distantes fachadas espelhadas, em cor azul.
Nenhum som proveniente do
exterior, nenhum veículo transitando, somente algumas pessoas caminhando
calmamente, altas, esguias, trajando branco.
Desce um grande painel vítreo,
escuro, posicionando-se à sua frente.
Na parte inferior, dois contornos
de mãos, iluminados em vermelho pulsante, o convidam a tocá-los.
Coloca as mãos espalmadas
sobre os contornos, que coincidem perfeitamente com elas, tornando-se verdes e
desaparecendo a seguir.
O painel inteiro se ilumina em
azul claro, e nada mais acontece.
Talvez
se trate de um computador.
Talvez
a MS tenha alterado o tom das execráveis telas azuis...
Ainda sem vontade de interagir
com quaisquer "sistemas" (ou sabe-se lá o que virá a se apresentar),
afasta-se um pouco do painel e entrega seu cansaço à concha-poltrona, tentando compreender
a situação.
Contrariando sua expectativa,
o painel logo passa a exibir imagens, familiares, mas em overlays confusos.
Vê seres
com quem conviveu ou interagiu, locais em que transitou, residiu, estudou,
trabalhou, desenvolveu diversas atividades; incontáveis pessoas utilizando
sistemas lógicos que desenvolveu; fragmentos de sua vida feliz, com sua mulher
e seus animais.
Enfim,
uma história resumida, sem ordem cronológica, talvez projeções de sua mente, misturando
lembranças remotas e recentes.
Em
seguida, apresenta-se um texto, em cujo final aparece sua assinatura:
Termo de anuência
Pelo presente termo, eu, ..................,
portador do Documento de Identificação Global No ........, concordo em
participar do ECTH - Experimento Cápsulas do Tempo Humanas.
Declaro estar ciente dos riscos envolvidos
nos processos de hibernação induzida, desaceleração, suspensão e reativação de
metabolismo, eximindo a Entidade Condutora do Experimento de quaisquer
responsabilidades quanto a eventuais incidentes ou danos, de quaisquer
naturezas, resultantes de minha participação no Experimento.
Declaro, ainda, concordar que a data de minha
reativação seja estabelecida pela Entidade Condutora do Experimento, unilateralmente
e sigilosamente (sem o meu conhecimento).
Registro os motivos pelos quais me inscrevo para
participação no Experimento:
"Considero-me total e irremediavelmente
inadequado à convivência com os demais seres humanos, bons ou maus, amados ou
não. Não desejo causar mal, nem às pessoas, nem a mim mesmo."
Sendo esta a livre e espontânea expressão da
verdade e de minha vontade,
01.09.2015- Assinatura.
05.09.2015- Participação aprovada pela ECE.
Ultima
cena, vê-se conduzido ao interior daquele recinto, onde se acomoda
tranquilamente e observa um grande display, no teto, indicando 12.09.2015 - 19:53.
O painel se apaga e o grande display
do teto passa a indicar intermitentemente o ano: 2537.
Deveria crer nisto?
Caso se trate de um experimento
real e bem sucedido, como descrito no tal Termo de Anuência, pode ter
permanecido ali por uns 522 anos!
Pensa nas chances de haver
sido apenas anestesiado durante algumas horas e estar participando, na verdade,
de algum estudo comportamental de imersão total, que exponha pessoas a situações
e cenários sugerindo haverem-se tornado peças arqueológicas vivas, mais de meio
milênio à frente de sua "época original".
Lembra-se inevitavelmente do
antológico "The Truman Show"
(1998), de Andrew Niccol, dirigido por Peter Weir, com Jim
Carrey no papel principal.
Mas, analisando diversos
detalhes da situação atual, a hipótese de "realidade simulada" lhe parece
assustadoramente improvável.
Não imagina quais das suas capacidades
poderiam ter sido afetadas, supostamente submetido durante tanto tempo a um incógnito
processo de hibernação induzida.
Não percebe, por enquanto,
mudanças em seu modo de pensar e de ser.
Ainda não realizou as
implicações de tudo aquilo, nem assimilou a possibilidade de não existirem mais
as poucas pessoas que conheceu e amou.
Procurando visitar pensamentos
e sentimentos que o dominavam quando tomou a decisão (assim crê) de participar
do experimento, atravessa uma tempestade de flashes, portadores de vívidos sentimentos
e memórias de suas reações intensas, inconformadas, diante de perdas, injustiça,
desconsideração, deboche, não-reciprocidade, desonestidade, esperteza premiada,
egoísmo, irresponsabilidade, dissimulação, desfaçatez, furtos intelectuais e materiais,
sorrateiros ou descarados, ignorância cultivada, futilidade, agressão gratuita,
morbidez, maldade, brutalidade, barbárie.
Sim, foi real.
Profundo desalento.
Anoiteceu...
Não sabe se pode sair de
dentro de si mesmo, ou daquela cápsula.
Não sabe se quer sair,
circular, interagir, descobrir mais.
Não alimenta boas expectativas
com relação a uma "nova" humanidade.
Talvez lhe permitam continuar a
ser apenas um espécime pensante, quieto, ainda sem causar mal a ninguém, hibernando
ali, indefinidamente.
No teto, o grande display agora
indica: 12.09.2537 - 19:53.
Resta-lhe acreditar nele...