Mais a visão se aprofunda,
mais estrelas se percebem,
na escuridão...

21 de julho de 2015

Sonha


Com todos os anjos que nos vieram e partiram,
e com o renascer pleno que será.

Com as premonições que nos faltaram
e com as que não compreendemos.

Com o que quisemos fazer por tantos seres
e com o que não nos foi dado realizar.

Com as palavras felizes que dissemos,
e com as que nem sempre pudemos pronunciar.

Com as coisas que merecíamos
e não mais nos fazem falta.

Com as conversas leves que o tempo não nos permitiu,
porque escrevíamos nossa longa história.

Com as lutas perdidas, vencidas,
e com as que ainda venceremos.

Sonha,
voando sobre campos de reencontro e paz,
com música etérea, praias, gaivotas e veleiros,
com pés descalços e mãos espalmadas ao sol,
com flores vivas gravadas contra o azul,
com tardes de outono e beija-flores de esmeralda,
com reinícios infindos.

Enquanto atravesso paredes de cristal,
perseguindo caleidoscópicas visões de sal,
degredados fragmentos de mim, em diluição reunidos.

Enquanto consulto alfarrábios e sextantes e astrolábios,
preparo secretas poções balsâmicas para nossas almas
e evoco memórias futuras que se haverão de escrever.

(Para minha esposa, Jussára)

19/21.jul.2015

4 de julho de 2015

Ainda estou


Nas sinfonias que não escrevi, não regi, apenas ouvi.
Nas músicas que não esqueci, murmurei, mal cantei.
Na voz rasgada do meu saxofone.

Nas devoradoras noites adolescentes, solitárias,
de estudos e lágrimas,
psicografando meu próprio espírito.

Nas discussões infindas pelo que sempre foi justo.

Nos extenuantes sonhos vívidos, de premonições,
de intermináveis preleções.

Nas harmonias dos concertos lógicos,
milhões de linhas de código, escritas sem pentagrama,
arquitetando filhos cibernéticos, enjeitados,
que jamais me abandonaram.

Diante da tela fria, ávido papel em branco.
Nas frases que quis formular, não consegui.
Nas centenas de escritos indignados, consternados,
apaixonados, inconformados, reflexivos, desalentados.
Na tristeza pelos que não foram capazes de compreender.

Em todas as coisas consertadas, por toda a vida,
e em tantas e tantas concebidas e construídas.

Perscrutando astros, por trás de uma velha luneta.

Na imposição das mãos, estas que a mais nada servem.

Na luz das lâmpadas da rua, tremeluzindo quando passava.
No som do móbile de ágata, tilintando sobre a minha cabeça.

Nos olhos de todos os meus cães.
Nos corações dos anjos que acolhi e dos que me acolheram.

Na madrugada da praça.
Nas indagações àqueles devas pesarosos, calados.
Na amizade meiga do velho cão perscrutador, que partiu.

Nos rastros sem fim que deixei na areia.
Na furiosa liberdade dos pés descalços, voando sobre o tartan.

Nos lugares em que jamais estive, nos que apenas visitei,
naqueles de que jamais saí.

Nas aulas proferidas e nas lições mal aprendidas.

Nas respostas avassaladoras, travadas na garganta.
Nos venenos que engoli, a devastar continuamente, sem matar.
Nas paredes esmurradas,
nos ossos quebrados, nos hematomas, nas queimaduras.
no ouvir vozes desconexas, de palavras impuras.

Na torturante prevalência dos pensamentos cíclicos, cruelmente críticos.
Nos analgésicos, neurolépticos, psicotrópicos, ansiolíticos.

Abandonando uma vida destroçada pelo viver normalmente,
resgatado para a vida sintética, equilibradamente asséptica, anestésica.

Entre as gaivotas, próximo à rocha de profundidade sinistra,
braçadas assombradas, nos riscos de bruma traçados no mar.

Num espírito a flutuar por entre luzes e sombras,
enlevos e tormentos, poemas e dores.

mai - jun 2015
©Alfredo Cyrino / Indigo Virgo®