Nas músicas que não esqueci,
murmurei, mal cantei.
Na voz rasgada do meu saxofone.
Nas devoradoras noites
adolescentes, solitárias,
de estudos e lágrimas,
psicografando meu próprio
espírito.
Nas discussões infindas pelo
que sempre foi justo.
Nos extenuantes sonhos vívidos,
de premonições,
de intermináveis preleções.
Nas harmonias dos concertos lógicos,
milhões de linhas de código,
escritas sem pentagrama,
arquitetando filhos
cibernéticos, enjeitados,
que jamais me abandonaram.
Diante da tela fria, ávido
papel em branco.
Nas frases que quis formular, não
consegui.
Nas centenas de escritos indignados,
consternados,
apaixonados, inconformados,
reflexivos, desalentados.
Na tristeza pelos que não
foram capazes de compreender.
Em todas as coisas consertadas,
por toda a vida,
e em tantas e tantas concebidas
e construídas.
Perscrutando astros, por trás de
uma velha luneta.
Na imposição das mãos, estas que
a mais nada servem.
Na luz das lâmpadas da rua,
tremeluzindo quando passava.
No som do móbile de ágata,
tilintando sobre a minha cabeça.
Nos olhos de todos os meus cães.
Nos corações dos anjos que
acolhi e dos que me acolheram.
Na madrugada da praça.
Nas indagações àqueles devas pesarosos,
calados.
Na amizade meiga do velho cão
perscrutador, que partiu.
Nos rastros sem fim que deixei
na areia.
Na furiosa liberdade dos pés descalços,
voando sobre o tartan.
Nos lugares em que jamais
estive, nos que apenas visitei,
naqueles de que jamais saí.
Nas aulas proferidas e nas
lições mal aprendidas.
Nas respostas avassaladoras,
travadas na garganta.
Nos venenos que engoli, a devastar
continuamente, sem matar.
Nas paredes esmurradas,
nos ossos quebrados, nos
hematomas, nas queimaduras.
no ouvir vozes desconexas, de palavras
impuras.
Na torturante prevalência dos
pensamentos cíclicos, cruelmente críticos.
Nos analgésicos, neurolépticos,
psicotrópicos, ansiolíticos.
Abandonando uma vida destroçada
pelo viver normalmente,
resgatado para a vida
sintética, equilibradamente asséptica, anestésica.
Entre as gaivotas, próximo à
rocha de profundidade sinistra,
braçadas assombradas, nos
riscos de bruma traçados no mar.
Num espírito a flutuar por
entre luzes e sombras,
enlevos e tormentos, poemas e
dores.