Civismo e respeito
Você passa a vida dedicando respeito a tudo
e a todos, pautado unicamente em seus princípios morais, éticos, cívicos,
religiosos até.
Nem faz questão de utilizar diversos
direitos preferenciais, guardando para si o inconformismo em face de criaturas
que se sentem espertas ao usurpá-los (exceto quando o fazem em detrimento de
pessoas que realmente precisem deles).
Mesmo assim, nas suas atividades cotidianas,
passa a topar com criaturas-espertas, freqüentemente ansiosas por criar
problemas com quem elas "pensam que podem".
Você sabe que elas "ainda não
podem".
Sabe que ainda tem o poder de trucidar, por
palavras ou de fato, quaisquer criaturas-espertas.
Mas, como nunca agiu assim com
quaisquer seres vivos, você, a cada novo evento, recorre aos seus princípios e
autocontrole, evitando o confronto.
E a criatura-esperta vai embora incólume e
satisfeita, supondo que você nada fez "porque não poderia fazer", e
não "porque não quis fazer".
Previdência e espoliação
Você trabalha "de carteira assinada",
ininterruptamente, desde os 13 anos de idade.
Evolui profissionalmente, atingindo condição
que lhe "permite" pagar a previdência social (segundo o salário
máximo de contribuição) e ser assaltado pela alíquota máxima do IRPF.
Você espera nem precisar da aposentadoria.
Mas, perto dos 60, conclui que precisará
dela.
Então, descobre que um congresso podre
formulou (e um gramcista miserável sancionou) a lei 9.876/99, alterando as
regras do jogo durante o jogo, lesando sem escrúpulos quem já pagava a
previdência há décadas.
Por uma simples penada desse enviado dos
infernos, a sua aposentadoria (debochadamente tratada por
"benefício") passou a ser calculada com base nas 180 últimas
contribuições, desconsiderando-se outras centenas delas, de valores elevados, pagas
na fase mais bem remunerada de sua vida profissional.
Analisando a possibilidade de fazer
prevalecerem os seus direitos, você decide "deixar quieto", em face
de um sistema judiciário preponderantemente conivente com o estado espoliador, e
pela certeza de uma excruciante espera por decisão judicial.
Assim, para garantir uma vida digna, resta
prosseguir trabalhando e agradecendo a Deus, que o abençoou com saúde e múltiplas
competências.
Ninhos escassos
Você reside em uma casa, em uma metrópole.
Aproximando-se a época de mudar para um
apartamento, descobre que praticamente não existem mais os imóveis "apenas
e simplesmente" confortáveis, agradáveis e seguros.
Na quase totalidade dos seus empreendimentos,
as construtoras descobriram que, independendo dos seus perfis econômico-sociais
e etários, todas as pessoas desejam arcar com custos condominiais afeitos a "comodidades
indispensáveis", tais como salões de festas, áreas de lazer, piscinas,
playgrounds, quadras poliesportivas, academias, saunas, salões de jogos, espaços
gourmet e o que mais vierem a inventar.
Então, você desiste da idéia e passa a considerar
a sua casa com mais carinho ainda, persistindo em cuidar da sua preservação
pelo maior tempo possível.
Aridez progressiva
O mundo lhe parece mais árido.
Encolheu o círculo de pessoas com quem você apreciava
conversar, trocar idéias reciprocamente enriquecedoras.
Parte dessas pessoas desapareceu.
Parte se modificou, mergulhou em estados
alterados, perdeu aptidão ou interesse, abandonou contatos genuinamente
produtivos.
E esse seu círculo não se renovou,
principalmente devido ao empobrecimento endêmico da comunicação, agora baseada
em contatos curtos, informações rápida e massivamente compartilhadas,
tristemente mal aproveitadas, mal rastreáveis, mal lastreadas.
Comunicação verbal
Surgem dificuldades para entender o que
dizem inúmeras pessoas com quem você tem de interagir.
Não porque esteja ficando surdo ou lerdo.
Na verdade, a sua mente não decodifica bem o
que você ouve, porque "os seus ouvidos padecem de problemas de dicção".
De nada valem a fluência em outros idiomas,
o domínio perfeito do seu idioma nativo, diante da crescente ubiqüidade de pronúncias
destrambelhadas, entonações descabidas, ênfases deslocadas, rajadas disparadas
por quem parece haver negligenciado a dose diária de clonazepan.
Ninguém mais se preocupa com ser bem
compreendido.
Vale mais encontrar uma identidade verbal inconfundível,
por mais inepta que pareça.
Então, a cada nova situação, ou você não dá
importância à mensagem mal emitida, ou passa por surdo e lerdo, pedindo à
pessoa que repita a frase (e rezando para que o faça de maneira compreensível).
Ruídos
Diminui ainda mais a sua tolerância a ruídos.
E aumentam ainda mais a quantidade e os
tipos de fontes de ruídos que se aproximam de você, ou das quais precise se
aproximar para atender às suas atividades normais.
Pessoas falando ao celular, como se não
precisassem dele para ser ouvidas.
Pessoas "conversando" frente a
frente, como se estivessem à distância de uma quadra.
Locutores de lojas e supermercados, correndo
o risco de serem empalados com os seus microfones.
Veículos desregulados, adulterados, mal
cuidados, extremamente ruidosos, incitando o seu desejo de possuir uma bazuca.
Imbecis, passando lentamente com os seus "carros
incrementados", ouvindo "música" medíocre, num volume que faz
vibrarem as janelas da sua casa, trazendo à sua mente a oração em que pede a
Deus que os torne surdos e portadores de graves seqüelas neurológicas.
Acidente ambulante
Você se torna autor reincidente de crimes
culposos, dentro do próprio lar.
Coisas menores, que às vezes caem das mãos
porque você supôs havê-las segurado direito.
Coisas maiores, que às vezes tombam ou
desabam sozinhas, porque você supôs havê-las posicionado corretamente, ou
porque foram projetadas por designers que prezam o bonitinho acima da
funcionalidade.
Objetos do seu ambiente, que decidem sair
dos seus lugares habituais, obstruir o seu caminho, provocar esbarrões,
tropeções, palavrões.
Aparelhos e utensílios anteriormente bem
comportados, que passam a não funcionar direito (ou até sucumbem) em suas mãos,
talvez ressentidos pelo excesso de força, ou pela falta de jeito ou de
paciência.
Reserva ambiental
Gradualmente, você se transforma em área de preservação
da biodiversidade.
À parte de distúrbios que possam debilitar o
seu sistema imunológico, várias "espécies ameaçadas" tentarão vencê-lo
e conquistar sítios em seu organismo.
Seres inocentes, como bactérias, cocos,
vírus e congêneres.
A sua própria microbiota poderá se insurgir,
causando desarranjos de toda sorte.
System auto-shut off
Começam a ocorrer deficiências e
imprecisões, em atividades que sempre transcorreram perfeitamente.
Um dos principais culpados, o seu arcabouço
musculoesquelético, possivelmente o obrigará também a abandonar hobbies tais
como tocar um instrumento musical, manusear ferramentas com destreza, ou o que
seja.
Os seus reflexos ainda perfeitos poderão não
compensar a sua visão não mais tão perfeita, de modo que o cuidado terá de ser redobrado
em quase tudo que fizer.
Em reverência às suas antigas façanhas
atléticas, você procura manter-se ainda como um ser em movimento.
Ciclicamente...
Perseverando em lapidar a mente plena, as palavras
assertivas, as ações conseqüentes, a emoção transmutada em aprendizado, o milenário
espírito viajante, você percebe que, enfim, toda a sua essência caminha
lentamente, rumo a diluir-se novamente no tempo.
Janeiro - Setembro 2019
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